Instituida pela Lei Complementar nº 128/2008, que fez várias alterações na Lei Complementar nº 123/06 (Lei Geral das MPE), a SPE (Sociedade de Propósito Específico) é um modelo de organização empresarial pelo qual se constitui Pessoa Jurídica, seja ela EIRELI, LTDA ou S/A, mais contudo, com um objetivo específico, ou seja, cuja atividade seja restrita e específica para algum fim econômico, podendo inclusive em alguns casos, ter prazo de existência determinado.
Tendo como sua principal característica a consecução de um objeto social específico, tal regime juridico, no âmbito privado, é comumente utilizado nos empreendimentos imobiliários e grandes obras de engenharia para segregação de riscos, otimização da atividade da sociedade e aproveitamento de benefícios fiscais.
Contudo, questão recorrente em nosso escritório, se dá nos questionamentos quanto ao risco da falta de autonomia das SPE, principalmente em eventual cenário de inadimplência ou insolvência futura da empresa, e também em eventual riscos de se ter quase como condição sine qua non uma futura Desconsideração da sua Personalidade jurídica em eventuais ações ou execuções civil, fiscal ou trabalhista.
Sendo assim, junto com a constituição da uma SPE, caminha certamente a síndrome da departamentalização do grupo econômico em diferentes CNPJs sem autonomia, e subordinados aos interesses do mesmo.
A falta de autonomia de uma SPE pode, realmente, resultar na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, se presentes ou de fácil constatação os pré-requisitos constantes do art. 50 do Código Civil (Desvio de finalidade e confusão patrimônios com as empresas e/ou sócios acionistas, gerentes ou contratadores), institutos utilizados para coibir o uso abusivo ou fraudulento da personalidade jurídica.
Assim como as offshore, quando as SPE são utilizadas de forma errônea pelo empresário a SPE acaba por ser considerada de forma prévia e objetiva, como um instrumento ineficaz quanto a separação patrimonial. Porém, deve-se provar o dano causado com a falta de autonomia da SPE, a sua subordinação ao grupo a que pertence, e conseqüente, a falta de unidade da mesma; o dano causado.
Nesse sentido, Tavares Borba tem uma visão extremista em relação às SPE: [1]
“A autonomia patrimonial e jurídica que caracteriza a sociedade apoia-se no conceito de patrimônio separado e na consequente configuração de um interesse jurídico diferenciado, que não é senão o interesse da própria sociedade. A sociedade mantém interesses próprios e inconfundíveis, totalmente distintos dos sócios individualmente, e é sobre essa esfera subjetiva particularizada que se constrói a teoria da personalidade jurídica. A desconsideração ocorre exatamente quando a personalidade jurídica é desvirtuada, deixando de tutelar a sociedade a que corresponde para servir de anteparo à atuação de terceiros, especialmente acionistas controladores. É o abuso da forma, que leva à imputação da responsabilidade àquele que utilizou a sociedade como mero instrumento de seus interesses. A S.P.C. ou S.P.E. corresponde a uma hipótese típica de desconsideração da personalidade jurídica, tanto que essas empresas, quando são constituídas, o são, única e exclusivamente, para desenvolver uma ação ou um projeto de interesse exclusivo de seu controlador. A S.P.E. não tem interesse próprio, não cumpre um objeto social próprio, não se destina a desenvolver uma vida social. Trata-se do que se poderia chamar uma sociedade ancilar, mero instrumento de sua controladora. A rigor, essas sociedades nascem para prestar um serviço a sua controladora, para cumprir uma simples etapa de um projeto, ou até mesmo para desenvolver um projeto da controladora. Normalmente, cumprido esse objeto, o seu destino é a liquidação. Nascem, normalmente, já marcadas para morrer. São nada mais nada menos do que uma sociedade-escrava, sem vida própria, e sem qualquer interesse particular capaz de justificá-la como empresa.Pode-se, todavia, entender que, se a S.P.E. cumpre todas as suas obrigações e não vem causar dano a ninguém, não haveria qualquer contra-indicação jurídica na sua formulação. Verificando-se, porém, a insolvência ou a inadimplência da S.P.E., a desconsideração da personalidade jurídica seria a consequência inevitável, posto que todas as obrigações seriam, por si mesmas, imputáveis à controladora. A S.P.E. pode, portanto, ser considerada uma fórmula adequada para o desenvolvimento autônomo de determinado projeto, mas afigura-se de todo imprestável para reduzir ou excluir as responsabilidades do grupo controlador que a institui.”
Desta feita, ressaltamos que a manutenção de diversas SPEs sobre o mesmo controle, estrutura administrativa e diretoria, além de possuírem sede no mesmo endereço, é prova de uma estrutura ineficaz. Normalmente o problema só surge quando uma das SPEs está em uma situação financeira delicada (inclusive sob o risco eminente de falência).
Portanto, a constituição de uma SPE sem autonomia econômica, com os ativos desta se confundindo com os de sua controladora, e gerencial, com sua vontade sendo subordinada a de sua controladora, pode resultar na aplicação da disregard doctrine.[2]
Nesse sentido, o STJ costuma citar de forma recorrente em seus julgados, o professor Fábio Konder Comparato em seus julgados referentes a desconsideração da
personalidade jurídica: [3]
“A confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada é, portanto, o critério fundamental para a desconsideração da personalidade jurídica externa corporis. E compreende-se, facilmente, que assim seja, pois a pessoa jurídica nada mais é, afinal, do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes haveriam de respeitá-lo, transformando-o, destarte, numa regra puramente unilateral.”
Sendo assim, a subordinação resultante não apenas em relação não equitativas entre as empresas do grupo, mas também mediante o controle unitário das mesmas, nos e. Superior Tribunal de Justiça assim também vem descingido, se não vejamos:
“Processo civil. Recurso ordinário em mandado de segurança. Falência. Grupo de sociedades. Estrutura meramente formal. Administração sob unidade gerencial, laboral e patrimonial. Desconsideração da personalidade jurídica da falida. Extensão do decreto falencial a outra sociedade do grupo. Possibilidade. Terceiros alcançados pelos efeitos da falência. Legitimidade recursal. – Pertencendo a falida a grupo de sociedades sob o mesmo controle e com estrutura meramente formal, o que ocorre quando as diversas pessoas jurídicas do grupo exercem suas atividades sob unidade gerencial, laboral e patrimonial, é legitima a desconsideração da personalidade jurídica da falida para que os efeitos do decreto falencial alcancem as demais sociedades do grupo. (…)” [4]
“GRUPO ECONÔMICO. Evidenciado que as empresas reclamadas possuem em comum o mesmo sócio-gerente ou presidente, normalmente seu acionista ou quotista majoritário; que várias delas foram registradas no mesmo endereço; que o reclamante prestou serviços em favor de quase todas; e, ainda, que existia um único departamento jurídico onde eram centralizadas as questões afetas às recorrentes, não há como negar a existência de um grupo econômico, nos moldes do artigo 2º, § 2º, da CLT. E, ainda que se admita que não havia subordinação hierárquica entre as empresas, há que se considerar que a relação de mera coordenação entre todas elas é suficiente para que seja caracterizado o grupo econômico, pois, segundo a melhor doutrina, a leitura do dispositivo citado não deve ser meramente literal, competindo ao magistrado buscar a interpretação que melhor se coadune com a idéia de se ampliar a proteção dos créditos trabalhistas, fim principal do Direito Laboral.” [5]
Além de todo o exposto, vale ainda importante atenção sobre o dispositivo legal que vincula os resultados obtidos à participação detida na SPE, de modo que o interesse de todos será o de capitalizar a SPE para ter direito a um resultado mais relevante, em especial no caso de rateio dos frutos. Nesse contexto, deve-se ter cuidado com as eventuais avaliações a serem efetuadas em caso de integralizações com outros ativos relevantes para o objeto social da SPE, de modo que nenhum abuso (“superfaturamento do bem avaliado”) seja efetuado. A verdade é que a lei, aparentemente, afastou a personalidade jurídica da SPE e fez da mesma aquilo que tentamos afastar, ou seja, um mero instrumento de seus controladores – no caso em questão, todos os seus sócios. Em um primeiro momento, não parece aconselhável “dividir” o resultado obtido e manter a SPE em funcionamento. É aconselhável quitar todo o passivo correspondente e dissolver a SPE.
Dr. Rodrigo Claudino Teixeira da SilvaOAB/SP: 184.207Teixeira e Marques Advogados
[1] BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 6a ed., Renovar, São Paulo, 2001, p. 493 e 495.
[2] COMPARATO, Fábio Konder. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 2a ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 1977, p. 343 e 344. 2. 5a ed., Saraiva, São Paulo, 2002, p. 31 a 34 e 40. KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine) e os Grupos de Empresas. 2a ed, Forense, Rio de Janeiro, 2002, p. 94, 106, 153 e 154.
[3] COMPARATO, Fábio Konder. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 2a ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 1977.
[4] Jurisprudência STJ. ROMS 12872 / SP; Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 2001/0010079-1, Terceira Turma do STJ, Relatora Min. Nancy Andrighi, Julgado em 24/06/2002, Publicado no DJ em 16/12/2002.
[5] Jurisprudência TRT. RO-11640/99 – 4ª T. – Rel. Juiz João Bosco Pinto Lara – Publ. MG. 24.06.00.
Dr. Rodrigo Claudino Teixeira da Silva
OAB/SP: 184.207
Teixeira e Marques Advogados